(Ros Mari – Mover Lapa)
Na oportunidade de conceder uma entrevista, por solicitação de uma rede de TV, em março de 2010, aproveitei para refletir sobre o que vem acontecendo com nossa cidade e, em especial, com os nossos bairros.
A sociedade civil está debatendo, há cerca de dois anos, o projeto de lei 671 do Executivo Municipal e o relatório produzido pela Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara Municipal, ambos atinentes à revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE).
Uma cidade que conta com um Plano Diretor, produto de debates e consenso entre os diferentes segmentos da sociedade, na perspectiva de uma cidade justa e sustentável, é privilegiada!
É sempre preciso lembrar que a cidade é resultado das relações sociais que ocorrem no seu espaço geográfico e da correlação de forças entre os diferentes agentes sociais que nela atuam.
O plano diretor é o principal instrumento de planejamento urbano.
São Paulo só teve, até hoje, dois planos diretores aprovados pelo Legislativo Municipal.
Façamos uma breve retrospectiva histórica.
O primeiro, em 1971, foi o PDDI (Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado), sob a batuta do então prefeito Figueiredo Ferraz, com o país vivendo os tristes anos da ditadura militar.
Em 1988, o prefeito Jânio Quadros aprovou um plano diretor por decurso de prazo e que foi contestado judicialmente.
Em 2002, na gestão do Partido dos Trabalhadores, a então prefeita Marta Suplicy, já em pleno regime democrático, encaminha à Câmara projeto de lei de um novo plano diretor que, depois de inúmeros debates, é aprovado e sancionado como Lei 13 430, valendo para o período 2002/2012.
Não é por mero acaso!
Nos anos 1970, a sociedade civil lutou, e muito, pela aprovação do Estatuto da Cidade, hoje uma referência utilizada em vários países da América Latina e uma série de instrumentos urbanísticos nele propostos está contida no PDE de 2002.
Infelizmente, há, em nosso país, uma tendência, ao longo da história, de “apagar” o que foi proposto e feito antes!
Em 2007, o atual prefeito Gilberto Kassab, encaminha à Câmara o projeto de lei de número 671, propondo a revisão do Plano Diretor vigente com um conteúdo antagônico ao que foi aprovado em 2002 e beneficiando claramente o mercado imobiliário.
A iniciativa privada passa a conduzir a produção da cidade e é preciso destacar que quando o poder particular toma as rédeas da cidade, o faz de forma atomizada, sem visão de conjunto.
Por conta da ação de 180 entidades da sociedade civil e com o apoio do Ministério Público e da mídia, a proposta de revisão é objeto de amplos e profundos debates.
Por quais razões o conteúdo do PL 671 e o relatório do Legislativo são antagônicos ao conteúdo do PDE em vigor?
· Não contêm qualquer avaliação do Plano Diretor vigente que justifiquem as modificações propostas;
· Retiram do Plano Diretor todas as diretrizes de longo prazo: sociais, econômicas, culturais, segurança, de abastecimento, educação e saúde, reduzindo o plano a uso e ocupação do solo, ambiente e sistema viário; e
· Retira as macro-áreas em que se detalham, para cada setor da cidade, as características de preservação, contenção, qualificação de urbanização consolidada, expansão com estruturação, às quais orientam a Lei de Uso e Ocupação do Solo, abrindo-se a possibilidade de alterações arbitrárias de zoneamento.
E é aqui que o bicho pega!!
Vamos tentar entender melhor o que ocorre, pois a terminologia técnica, no mais das vezes, é hermética e de difícil compreensão.
O PDE de 2002 definiu 4 macro-áreas: (1) a macro-área de urbanização consolidada – o eixo mais rico da cidade oeste/sul; (2) a macro-área de reestruturação e qualificação – ao longo dos rios e das vias férreas; (3) a macro-área de urbanização em consolidação que é um anel envoltório da área central e (4) a macro-área de urbanização e qualificação – asnossasperiferias,detalhando, para cada uma delas, as características de preservação, contenção, qualificação e expansão, características que orientam a lei de Uso e Ocupação do Solo.
O PL 671 simplesmente “apaga” as macro-áreas e passa a tratar o território da cidade como se ele fosse “um papel em branco”, como se não houvesse mais a necessidade de investimentos específicos e forte atuação do poder público para qualificar as áreas periféricas e como se não houvesse mais necessidade de controlar a macro-área de urbanização consolidada que vem sofrendo um processo de verticalização desenfreada.
O PDE vigente também definiu a possibilidade de se utilizar um instrumento de intervenção no espaço urbano designado como “outorga onerosa” – o mercado imobiliário pode pagar para construir a mais do que o coeficiente de aproveitamento mínimo permitido pelo zoneamento de determinada área da cidade.
No PDE está explicitado o coeficiente de aproveitamento mínimo, que permite a construção, até certo limite, sem se pagar nada e o coeficiente de aproveitamento máximo que pode ser atingido mediante o pagamento da outorga onerosa.
Definiram-se, em 2002, estoques de potenciais construtivos (em m2) nos vários distritos da cidade para utilização da outorga onerosa.
Estes números (estoques) não saíram de uma cartola de mágico!
Foi realizada, ao que se conhece, uma análise da tendência de construção na cidade, de 1992 a 2002, fez-se uma projeção do que foi construído em cada distrito e assim definiram-se os estoques de áreas compráveis (residenciais e comerciais), via outorga onerosa, na cidade de São Paulo.
A seguir, apresentamos uma tabela com os distritos com maior utilização dos estoques de potenciais construtivos residenciais em 2009.
Distritos - Estoques 2009 (m2) - % de utilização
Campo Grande - 130.000 - 100%
Cambuci - 20.000 - 100%
Jaguaré - 32.000 - 100%
Vila Leopoldina - 190.000 - 100%
Morumbi - 30.000 - 100%
Vila Guilherme - 40.000- 100%
Liberdade - 25.000 - 100%
Lapa - 75.000 - 92%
Ipiranga - 110.000 - 90%
Cursino - 110.000 - 85%
Capão Redondo - 20.000 - 75%
Ou seja, os distritos da Lapa e Vila Leopoldina já atingiram o limite dos estoques.
Ocorre que o mercado imobiliário não se conforma com isso!!
Quer continuar construindo a qualquer custo e quer a revisão dos estoques!!
Uma das formas: extinguir as macro-áreas.
Esqueçamos as características e as especificidades do território!
Vamos tratar o espaço urbano de nossa cidade como se fosse uma folha em branco e aumentar os estoques, pois o negócio é construir!!
Não se conhecem estudos atualizados que dêem conta de um diagnóstico mais detalhado das características das diferentes frações do espaço urbano, de 2002 até hoje, nem da capacidade de suporte do território (meio físico, infra-estrutura, viário dentre outros) da cidade de São Paulo.
Além disso, até o momento, não temos um diagnóstico do recolhimento dessas outorgas onerosas nos diferentes distritos e o que foi feito com esse dinheiro e, ainda mais, quais as conseqüências da geração desses m2 a mais em cada distrito e na cidade como um todo.
Em um quadro como esse, imagine o que será do futuro de nossa cidade: um extenso “paliteiro” de prédios que desconsidera a capacidade de suporte dos bairros e a qualidade de vida de seus moradores, um adensamento construtivo (e não habitacional) contribuindo, ainda mais, para a ocorrência de eventos extremos em nossa cidade (alagamentos, deslizamentos dentre outros), já que existe impacto da configuração do espaço urbano nas mudanças climáticas em curso, principalmente com o surgimento das ilhas de calor urbano e seus efeitos nefastos (tema para reflexão futura no blog do Mover).
Bem, como está sendo muito complicado aprovar o conteúdo proposto pelo Executivo e o relatório do Legislativo face às denúncias veiculadas pela grande imprensa sobre financiamento privado de campanhas eleitorais (setor imobiliário em especial), busca-se o Plano B, qual seja, a retomada das Operações Urbanas, outro instrumento urbanístico contido no PDE vigente.
Por meio delas, pode-se alterar o potencial construtivo de parcelas do espaço urbano independente do plano diretor.
E a bola da vez é a Vila Sonia e, com certeza, daqui há algum tempo, a Vila Leopoldina!!
Fiquemos atentos, pois estas Operações Urbanas têm que ser aprovadas no Legislativo e devem ser objeto de Audiências Públicas.
Por enquanto é só ...
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Um comentário:
Grande Mestra Ros Mari :).
Adorei o texto, bem claro e objetivo, como deveriam ser...
Mais uma motivação para eu elaborar o meu próximo artigo para o jornal do Ipiranga (Notícias do Ipiranga - www.noticiasdoipiranga.com.br), para o qual escrevo, onde falarei sobre a relação "Poder Público X Sociedade Civil", sendo que um deveria representar ou outro...viram inimigos...Beijos e obrigado pela aula. Sandro.
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